Numa experiência semelhante, recordo-me de tentar escrever, mentalmente a palavra 'surgery'. Toda a gente me dizia que eu tinha tido uma 'brain surgery' e eu não conseguia decifrar a palavra. Lembro-me perfeitamente de tentar escrever com o dedo na janela, e a única coisa que me saía era cirjury. Não conseguia discernir nada de melhor, mas sabia que estava errada.E que não era nada daquilo.
Também tinha uma sensação estranha sempre que alguém tentava pronunciar o meu nome 'Riberio', com o 'R' super 'dobrado' e soava-me tão mal.
Tudo me soava mal, aliás. Eu sabia que aquele sitio, tudo tão branco...devia ser um hospital, mas o que fazia eu ali?
Ao ler este livro, identifiquei-me com o José Cardoso Pires. No livro, ele descreve como passava por uma porta de um WC, olhava o simbolo, e não fazia a minima ideia do que aquilo queria dizer. É muito estranho quando não conseguimos reconhecer as coisas mais básicas. Obedecer aos comendos mais primários, como por exemplo levar uma colher à boca.
Isso é o que acontece depois de uma brain surgery. Ou algo do género.
A minha experiência foi estranha, sim, mas enriquecedora, porque hoje, dou muito, mas muito mais valor às coisas simples. Como um sorriso por exemplo.
E quando tu me sorris, eu acho que é um sorriso verdadeiro. Quando os teus olhos brilham, eu acho que é por me ver. E quando gaguejas, eu acho que é por falares comigo.
Mas talvez esteja, também aqui, errada. Como em tantas outras coisas na vida.

''(...)Lembro-me de que essa manhã foi invadida por um aguaceiro desalmado, ouvia-se uma chuva grossa e pesada lá fora mas deve ter sido passageira porque quando acabou a Edite ainda estava ao telefone. A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente - e foi ali.
Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta de vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objecto, do eu com outro alguém ou do real com a visão que o abstracto contém. Ele. O mesmo que a mulher (Edite, chama-se ela mas nada garante que esse homem ainda lhe conheça o nome, que não a considere apenas um facto, uma presença) exacto, esse mesmo Ele, o tal que a Edite irá encontrar, não tarda muito, a pentear-se com uma escova de dentes antes de partirem de urgência para o Hospital de Santa Maria e o mesmo que, dias depois, uma enfermeira surpreenderá em igual operação ao espelho do lavatório do quarto.(...)''
Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta de vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objecto, do eu com outro alguém ou do real com a visão que o abstracto contém. Ele. O mesmo que a mulher (Edite, chama-se ela mas nada garante que esse homem ainda lhe conheça o nome, que não a considere apenas um facto, uma presença) exacto, esse mesmo Ele, o tal que a Edite irá encontrar, não tarda muito, a pentear-se com uma escova de dentes antes de partirem de urgência para o Hospital de Santa Maria e o mesmo que, dias depois, uma enfermeira surpreenderá em igual operação ao espelho do lavatório do quarto.(...)''
Extracto do livro De Profundis, Valsa Lenta de José Cardoso Pires.

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